Bang! #3 em formato electrónico
Conteúdo:
Fantascom - João Barreiros
[não ficção]
Sobre o Fantástico na Literatura Portuguesa - David Soares
[...] Leste ou Oeste, todas as mensagens diziam o mesmo, apenas os detalhes diferiam: loura de olhos azuis, avistada no Colorado; ruiva na Califórnia; mulher de olhos cinzentos em Seattle; mulher de cabelos encaracolados em Phoenix; rapariga negra atraente no Wyoming. Depois disso, os pormenores tornavam-se íntimos, às vezes de forma ridícula – idade aproximada, tiques, sotaque. Raramente estas mulheres davam um nome. Eram frequentemente acompanhadas por guarda-costas ou observadas por amantes possessivos e zelosos.
Então pessoas como eu tinham que segui-las através de marcas de beleza e piscadelas de olho e as descrições dos sorrisos.
Havia sempre algumas notas patéticas da parte de sonhadores que julgavam que seria fácil: Perdi a minha mulher no dia 27. De nome Mary Smith. Alguém a viu a Oeste?
Eu ignorava essas notas. Penso que toda a gente ignorava. Sabíamos que os sonhadores iriam ceder gradualmente à realidade e, desse modo, a aceitação ou a uma busca frenética.
Nos últimos cinco anos, tinha seguido por todo o país uma loura magra de trinta e cinco anos com óculos em todas as pausas, todas as férias, todos os fins-de-semana prolongados que conseguia obter do meu trabalho em Nova Iorque.
Ela fora avistada no que restava de Denver, e em Whichita e em Pueblo e, uma vez, em Houston. A única característica que a distinguia era a de um dente da frente lascado. Lindsay, a minha mulher, tinha-o lascado numa queda de bicicleta quando tinha sete anos. Nunca se dera ao trabalho de o arranjar. Era uma pequena lasca e embora uma pessoa tivesse que ficar a olhar para a poder ver, dava ao seu sorriso uma qualidade ligeiramente enternecedora e assimétrica.
Eu perseguia a descrição desse sorriso. [...]
Trabalho à noite num grande edifício para escritórios, esfregona seca para lá e para cá pelos corredores, ou ocupado a apanhar beatas de cigarro dos urinóis. Enquanto o faço, estou constantemente a ouvir as cassetes. Certas noites é romeno. Isto não funciona: nu functioneaza. Quanto custa: cît costa? Outras noites é tailandês. Vire à esquerda: lieow sai. Vire à direita: lieow kwa. Ou então farsi. Todos os dias: har rooz. Hoje: emrooz. Ontem: dirooz. Preciso de uma almofada, por favor: lotfan bälesh mi-khäm.
Um idioma por noite, uma palavra de cada vez. [...]
[...] Ele encolheu os ombros. Era do conhecimento geral que se uma pessoa se aventurasse para fora da esfera de Dyson (o que ninguém era capaz) e se encontrasse frente a frente com as estrelas (o que nunca acontecia) a tracção das estrelas iria arrastá-lo até cair, indefeso, cair para todo o sempre. Todos, até o pai de Mitchell, diziam que a tracção era forte o suficiente para quebrar um cabo de aço num instante, ou superar os motores mais fortes, após pouco tempo. Que Mitchell soubesse, nunca ninguém se aventurara para o exterior da esfera de Dyson em dois mil anos; pelo menos ninguém que tivesse vivido para o contar.
Ainda assim, Mitchell tinha a certeza de que algo não batia certo nesta ideia, apesar de conseguir sentir uma quase tangível tracção das “falsas” estrelas projectadas no tecto abobado do Instituto. Só podia imaginar o que as verdadeiras estrelas lhe fariam. A força, pensou, devia ser incrível! Apesar disso, ainda havia questões por responder…
Foi atrás de Jerina. [...]
A conversa tinha escapado ao meu controle, e tive de o admitir:
-Sim, é verdade! Vim à consulta para ver se o Sr. Dr. me impedia de dormir. É que eu não posso dormir. Senão, não sei o que pode acontecer.
- Isso é muito curioso. Não me quer dizer mais nada?
Pronto! Já estava. Mais outro que não queria acreditar em mim. Mais outro que não me percebia. Começavam com estas falinhas mansas e depois procuravam curar-me de doenças mentais obscuras, que só eles conheciam, ou piores que essas. Como explicar-lhes que não podia dormir? Como demonstrar-lhes que era um perigo para toda a gente se eu adormecesse novamente. Já tinha tentado tudo e mais alguma coisa. Mas que mais podia eu fazer?
De obscuro jovem esotérico tinha-me desenvolvido vertiginosamente. Calcorreei paisagens intelectuais desconhecidas de quase todos. Penetrei segredos virgens. Quanta emoção. Quanta alegria. Que prazeres intelectuais não frui nessas vitórias antigas. Mas agora, que sufoco.
Presença habitual nas páginas do DN Jovem, é com prazer que a Bang! abre as suas portas a Ricardo Mendes, mais um valor na literatura fantástica portuguesa.Não se recordava da primeira vez que a viu, nem de quando este envergonhado gesto se tornou num pecado irresistível, mas já não conseguia viver sem ele. Todas as manhãs, quando o galo (que ele carinhosamente apelidou de Refeição) apresentava a ordem de levantar, o jovem corria para a sua janela e abria as portadas, e tentava esconder a chiadeira que as dobradiças mal oleadas provocavam, não fosse ser ouvido por alguém da família. Por entre duas árvores que estavam prestes a cair ele conseguia vislumbrar a sua vizinha e objecto do seu desejo. Encontrava-a sempre de pé quando acordava, fazendo-o presumir que passava as noites em claro. Chamava-se Decadência, e todas as manhãs bebia, meia despida, a sua chávena de cianeto. E ele, inocente, observava-a de lágrimas nos olhos. Às vezes questionava-se se ela teria conhecimento de que estava a ser vigiada. Mas, depois de tanto tempo, já nem sequer se preocupava com isso.
Conteúdo nº1:
Contos:
"Três amigos" por Rhys Hughes
"Ventos imutáveis" por Frank Roger
"O Povo do Mar" por Vasco Curado
"A Casa de um Homem" por Luís Filipe Silva
"In Orbite Medievali" por Tobias S. Buckell
"Mandala: uma aventura do Sr. Bentley" por Ágata Ramos
Pré-publicação:
"Elric - A Fortaleza da Pérola"
Entrevistas:
Ágata Ramos Simões, por Rogério Ribeiro
Márcia Guimarães, por Rogério Ribeiro
Artigos:
"O Fórum que foi fantástico" por Rogério Ribeiro
"Ao Sol de Newton - A FC Hard, oitenta anos depois" por João Seixas
Resenha:
"Os factos da vida" de Graham Joyce, por Safaa Dib
Perfil:
Mary Gentle
Conteúdo nº0:
Contos:
"Aranhas Temporais, Teias Espaciais" por Lavie Tidhar
"Sumo Informático" por Lawrence M. Schoen
"A Lagoa" por João Ventura
"O Candelabro: uma aventura do Sr. Bentley" por Ágata Ramos
Pré-publicações:
"A mão direita do Destino" por Robert E. Howard
"No Vale, a Igreja", por David Soares
Entrevistas:
David Soares, por Rogério Ribeiro
José Lopes, por Luís Corte-Real
Fernando Ribeiro, por Luís Corte-Real
Artigos:
"Épica - Associação Portuguesa do Fantástico nas Artes"
"Saramago: O Nobel da Ficção Científica?" por Jorge Candeias
"A Armada está a implodir e o imperador não quer saber" por João Barreiros
Resenhas:
"Histórias à Beira-Mar" de Ana Cristina Luz, por Safaa Dib
"Biblioteca" de Zoran Zivkovic, por Luís Rodrigues
Perfil:
China Miéville